BRASÍLIA/DF - No dia em que a pandemia de coronavírus registrou mais mortes no Brasil (4.249) o presidente Jair Bolsonaro e seus aliados evangélicos sofreram duas duras derrotas no Supremo Tribunal Federal. A primeira teve o ministro Luís Roberto Barroso dando aval ao pedido feito por parlamentares da Cidadania para que o Senado instale a comissão parlamentar de inquérito (CPI) da Pandemia e investigue a omissão do Governo Federal no combate à covid-19. Em outra frente, o Supremo impediu a realização de cultos e missas durante as fases mais graves da crise sanitária em São Paulo, como desejava o presidente.
Bolsonaro e representantes de entidades religiosas, com a força da militância digital do bolsonarismo defendiam que era necessário preservar a liberdade de religião, mantendo igrejas em funcionamento independentemente do estágio da pandemia em que o país se encontra. Foram derrotados no plenário do Tribunal por 9 votos a 2. Os ministros entenderam que o decreto estadual que regulamenta o tema não era inconstitucional, mas que ele visava preservar a saúde pública, e não restringir qualquer liberdade individual prevista na Constituição.
Pela terceira vez em um ano, o STF entendeu que não é possível limitar decretos de governantes estaduais que tentam controlar a disseminação do coronavírus. Nesta quinta-feira, os ministros concluíram o julgamento de uma ação que pedia que fosse declarado inconstitucional um decreto assinado pelo governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que proibia temporariamente a realização de cultos e missas em templos religiosos nas fases mais agudas da pandemia de covid-19.
Bolsonaro colocou o Advogado Geral da União, André Mendonça, para defender com um forte discurso apelativo que mantivesse as igrejas em funcionamento. Ao longo da semana, ainda concedeu entrevistas dizendo que esperava que a Corte não reconhecesse o decreto de Doria. Mas a derrota foi acachapante, embora não tenha alcançado a unanimidade já vista em outras decisões da corte: 9 a 2. O ministro Kássio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro para a vaga após a aposentadoria de Celso de Mello, usou mais argumentos religiosos do que técnicos para defender a abertura dos templos. José Antonio Dias Toffoli, nem apresentou qualquer justificativa, só disse que seguia o voto de Marques.
Do outro lado, todos os ministros criticaram a política negacionista do Governo e defenderam que o direito à fé não supera o direito à vida. “O Estado não se mete na fé e a fé não se mete no Estado”, afirmou o ministro Alexandre de Moraes. Em linha semelhante, seguiu o presidente do Supremo, Luiz Fux. “A fé, que é o coração da cura, não é uma fé cega. É uma fé que presta deferência à ciência”. Por fim, orientados pelos ministros Gilmar Mendes e Cármen Lúcia, os magistrados entenderam que esta decisão deverá ser replicada em instâncias judiciais do restante do Brasil. “Nós todos estamos pedindo um pouco de sossego pelo menos, um sossego jurídico. E esse desassossego permanente tem gerado uma série de complicações, não em relação especificamente só a este tema, mas estou me referindo à questão das competências. O Supremo definiu [as competências] no ano passado”, afirmou a ministra, lembrando da decisão de abril de 2020 que disse que Estados, União e Municípios tinham de agir conjuntamente no combate à pandemia. Bolsonaro e seus seguidores costumam espalhar a desinformação que aquela decisão de 2020 o impediu de agir no controle da pandemia. O que não é verdade. Esse também será um dos focos da atuação da CPI.
Seguidas derrotas no STF
Os dois reveses impostos ao bolsonarismo nesta quinta pela Corte soma-se a outro, ainda mais caro ao presidente. O ministro Edson Fachin anulou, no dia 10 de março, as condenações do ex-presidente ao reconhecer que a 13ª Vara Federal de Curitiba, responsável pela maioria dos casos da Operação Lava Jato, não tinha a competência para julgar os processos de Lula. Dias depois foi a vez dos ministros da Segunda Turma do Supremo voltarem ao pedido de suspeição do ex-juiz Sergio Moro, solicitado pela defesa do petista. Por 3 a 2, a Corte legitimou o pedido do ex-presidente, trazendo-o mais perto para o tabuleiro eleitoral de 2022, ao entender que o ex-juiz Sérgio Moro foi parcial eu seu julgamento.
O presidente, agora, vê-se diante de uma investigação que tem potencial de interferir nos rumos políticos da segunda metade de seu mandato. Sem conseguir que o presidente da Câmara e líder do Centrão, Arthur Lira (PP-AL), aceite um dos pedidos de impeachment, a CPI será o principal instrumento da oposição para expor as falhas da gestão Bolsonaro na atual crise. “A CPI é essencial para corrigir erros, apontar culpados e colocar o Brasil no rumo certo no combate à pandemia de covid-19”, alegou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). Ao lado de seu correligionário Jorge Kajuru (GO), Vieira recorreu ao Supremo para conseguir que o Senado instalasse o colegiado.
Desde fevereiro, 31 senadores tentam abrir a investigação parlamentar. Mesmo tendo conseguido quatro assinaturas a mais que o mínimo necessário para se instalar a comissão, os senadores encontravam uma barreira para a criação dela: o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Eleito com o apoio de Bolsonaro, o senador não autorizou a abertura da CPI alegando que ela seria contraproducente no momento atual da pandemia. “A comissão poderá ter o efeito inverso ao desejado, como o de eventualmente gerar desconfiança da população em face das autoridades públicas em todos os níveis, promover reações sociais inesperadas”, justificou Pacheco em ofício encaminhado ao STF.
O ministro Roberto Barroso não reconheceu os argumentos de Pacheco e acatou o requerimento da oposição por entender que todos os requisitos legais para sua abertura foram cumpridos. “Trata-se de garantia que decorre da cláusula do Estado Democrático de Direito e que viabiliza às minorias parlamentares o exercício da oposição democrática. Tanto é assim que o quórum é de um terço dos membros da casa legislativa, e não de maioria. Por esse motivo, a sua efetividade não pode estar condicionada à vontade parlamentar predominante”, afirmou Barroso na decisão.
No fim do dia, o senador Rodrigo Pacheco afirmou que cumprirá a decisão judicial, mas destacou que, na sua avaliação, a CPI no momento atual seria um “ponto fora da curva”. “Ela pode ser o coroamento do insucesso nacional no enfrentamento da pandemia. Como se pretende apurar o passado se não conseguimos defender o nosso presente e o nosso futuro com ações concretas?”, indagou. Ele ainda se queixou do caráter eleitoral que a comissão terá. “A CPI poderá, sim, ter um papel de antecipação de discussão política eleitoral de 2022, de palanque político, que, absolutamente, é inapropriado para esse momento da nação”.
Como a decisão de Barroso foi dada em uma liminar, ela ainda deve ser analisada pelo plenário do STF a partir do dia 16 de abril. Os votos serão virtuais, nos quais cada ministro deposita seu entendimento no sistema interno e, quando todos forem computados, é feito o cálculo e o anúncio da tese vencedora. Antes, porém, o Senado já deve iniciar o processo de instalação. Pacheco se comprometeu a iniciar a criação da comissão na primeira sessão da próxima semana, que deve ocorrer no dia 12.
*Por: Afonso Benites / EL PAÍS