UCRÂNIA - A Rússia prepara o que pode ser o maior ataque contra a Ucrânia desde as primeiras semanas da invasão promovida por Vladimir Putin em fevereiro de 2022. Segundo Kiev, mais de 100 mil soldados foram concentrados na região noroeste de Donetsk, no leste do país.
A informação foi dada a repórteres pelo porta-voz do Grupo Oriental das Forças Armadas da Ucrânia, Serhii Tcherevati. Ele afirmou que há cerca de 900 tanques, 555 sistemas de artilharia e 370 lançadores múltiplos de foguetes na direção de Liman-Kupiansk.
O alerta foi dado em um dia particularmente agitado no conflito, com o ataque à ponte que liga a Crimeia ocupada à Rússia e a saída de Putin do acordo que permite a exportação de grãos ucranianos pelo mar Negro sem oposição eventual de bloqueio militar.
Segundo a reportagem ouviu de analistas militares em Moscou, a provável ação visa romper as defesas de Kiev no momento em que a contraofensiva das forças de Volodimir Zelenski mostra sinais de dificuldades, com avanços apenas incrementais mais a sudeste de Donetsk e em Zaporíjia (sul do país).
A invasão do ano passado mobilizou cerca de 200 mil militares e provou-se insuficiente, por erros logísticos e táticos, para capturar Kiev. Mas a ação ocorreu em três grandes frentes do país, o que gerou críticas acerca do número de soldados nos esforços principais, e agora parece que a ofensiva será concentrada.
Se o cenário se confirmar, Kiev pode ter problemas. Sua contraofensiva, iniciada em 4 de junho, não rompeu as defesas de Moscou, apesar de haver batalhas com grande atrito e perdas de lado a lado --só que há menos soldados ucranianos, talvez 60 mil na ação, do que russos. Autoridades da Otan, a aliança militar ocidental que armou e treinou as forças de Zelenski para a ação, têm baixado as expectativas sobre resultados rápidos.
Mas ninguém contava, ao menos publicamente, com uma nova ofensiva russa. Ao contrário, o mantra de comentaristas ocidentais é o da exaustão das forças de Putin, que de quebra enfrentou um motim dos mercenários do Grupo Wagner no fim de junho, perdendo acesso a esses recursos -amplamente empregado nos meses mais estáticos da guerra.
Se a ofensiva ocorrer de fato, na direção aparente, pode cortar pela metade os 45% de Donetsk que ainda estão em mãos da Ucrânia, colocando linhas de suprimento para a capital provisória de Kramatorsk sob risco. É um cenário novo na guerra, com consequências imprevisíveis.
Das quatro regiões anexadas ilegalmente por Putin em setembro do ano passado, Donetsk é aquela em que ele tem menos controle territorial. Domina quase toda a vizinha Lugansk e boa parte de Zaporíjia e Kherson, que estabelecem a chamada ponte terrestre entre a Rússia e a Crimeia no sul ucraniano, às margens do mar de Azov.
Ele havia sido estimado na semana passada por George Friedman, da consultoria americana Geopolitical Futures. Em texto para seus clientes, ele afirmou que havia a possibilidade de uma ofensiva russa tentar resolver em favor de Moscou a situação em Donetsk, o que poderá levar a um congelamento das fronteiras presumidas.
Friedman argumenta que o presidente americano Joe Biden não gostaria de entrar a campanha eleitoral de 2024 com uma situação indefinida na Ucrânia, e há fadiga entre os aliados ocidentais, como disse na semana passada o tcheco Petr Pavel na reunião de cúpula da Otan. Mas o presidente da República Tcheca contava mais com ganhos de Kiev do que com uma ofensiva russa, que colocará em xeque o esforço da Otan em preparar Zelenski para contra-atacar.
Por outro lado, se for em frente Putin estará arriscando o coração de suas forças, e uma derrota será desastrosa, obrigando talvez uma nova rodada de mobilização de reservistas. Estima-se que haja de 300 mil a 400 mil, dos cerca de 1 milhão de militares russos, em território ocupado na Ucrânia, então uma força de 100 mil homens é muito significativa.
No auge da ocupação soviética do Afeganistão, que durou de 1979 a 1989, havia 120 mil soldados de Moscou no país. Eles acabaram saindo humilhados pelos guerrilheiros islâmicos do país, uma derrota geracional que acompanhou o ocaso do império comunista --dissolvido logo depois, em 1991.
por IGOR GIELOW / FOLHA de S.PAULO