Paradigmas educacionais que incluam o empoderamento e o olhar humanizado dos profissionais auxiliam no aprimoramento do sistema público de saúde
Oferecer a futuros profissionais de Saúde uma formação voltada ao mundo real, que considere o contexto brasileiro e, também, seja multidisciplinar e compromissada com o olhar para o paciente como um todo - em oposição à formação fragmentada, excessivamente especializada e pautada na lógica de mercado - é fundamental ao fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Esta é a síntese de reflexões e estudos realizados por pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Gestão da Clínica (PPGGC).
As inquietações relacionadas à defesa do SUS surgiram quando Antonio Flavio Archangelo Junior e Enderson Carvalho, à época estudantes no curso de mestrado profissional do PPGGC, tentavam entender como a Educação em Saúde pode ser utilizada como ferramenta de fortalecimento do Sistema, no período em que ocupavam também o papel de gestores da Fundação Municipal de Saúde da cidade de Rio Claro (SP). Os debates ocorreram no escopo da atividade curricular "Processos Educacionais em Saúde", com foco em discussões teóricas da obra de autores que trabalham com as chamadas metodologias ativas - processo de ensino-aprendizagem que incentiva a autonomia e a participação dos estudantes buscando favorecer sua capacidade crítica e reflexiva.
Uma das obras estudadas foi a de David Ausubel, com a Teoria da Aprendizagem Significativa (TAS). O psicólogo da Educação estadunidense defende o conhecimento prévio de uma pessoa como principal fator que influencia em seu aprendizado. Nesse sentido, é importante os educadores desenvolverem estratégias pedagógicas que levem em consideração esse conhecimento já existente.
Ao refletirem sobre a teoria com foco na área da Saúde, os pesquisadores enfatizam a importância do ensino voltado para as necessidades de aprendizagem dos estudantes e que aborde problemas e desafios relacionados diretamente ao contexto brasileiro, auxiliando, portanto, na formação voltada ao mundo real.
Em contraposição, Archangelo afirma que, atualmente, os profissionais da Saúde são ensinados para um atendimento descontextualizado da realidade brasileira, com formação fragmentada e especializada, voltada à lógica mercadológica - ou seja, segundo o pesquisador, em um sistema que restringe os serviços de saúde ao comercializá-los, por planos particulares, elitizando o acesso à saúde, além de atrair os médicos para o setor privado.
Desse modo, defendem a necessidade de criação de novos paradigmas na Educação em Saúde, com foco em metodologias ativas, visão multidisciplinar e pautados no atendimento humanizado e no olhar para o paciente como um todo. Assim, um médico no SUS poderá ir além do tratamento a uma doença específica, conforme exemplifica Archangelo. "É um olhar integral, para entender, junto com uma equipe multidisciplinar, os fatores e condicionantes que afetam aquele paciente. O foco no meio, na sociedade e no contexto familiar nos quais o indivíduo está inserido e a prioridade no cuidado com o outro são ações que suscitam o empoderamento, que traz, por sua vez, um sentimento de competência e de liberdade ao profissional."
Para Archangelo, ao entender e refletir, criticamente, sobre onde se opera, como se opera e para quem se opera sua prática, o profissional enxerga a equidade em uma sociedade tão desigual quanto a brasileira. "Ao contrário disso, quando o acesso à saúde é dado de acordo com o poder monetário, uma grande parcela da população é automaticamente condenada à desassistência. Se apoderar do conhecimento e do atendimento integral ao paciente é uma forma de resistência e de valorizar o sistema público de saúde", reforça o pesquisador.
No entanto, a mudança envolve desafios. "É uma luta diária, que envolve reflexão e formação desses profissionais do SUS que operam o sistema, mas quando alcançarmos esses novos paradigmas, nos fortaleceremos para enfrentar os constantes ataques e a lógica perversa de desmonte e privatização em detrimento ao sistema público, universal e gratuito. E esse deve ser o compromisso de todas as pessoas", defende Archangelo.
Os debates deram origem ao artigo "Transcendence in the Formation of the Healthcare Professional for Changing Practice" (disponível em https://bit.ly/3A9Mb8D), publicado no Journal of Modern Education Review.
Além de Archangelo e Carvalho, mestres em Gestão da Clínica pela UFSCar, assinam a publicação Aline Guerra Aquilante e Jair Borges Barbosa Neto, docentes do Departamento de Medicina (DMed) da UFSCar; Eucinete Ferreira de Lima, profissional do SUS de Rio Branco (AC); e Ángela Maria Velasquez Lainez, docente da Universidade de Honduras.
Regionalização
Com o aprofundamento dos estudos em sua dissertação de mestrado, intitulada "Regionalização como garantia de acesso aos serviços de saúde: revisão integrativa de literatura" (https://bit.ly/3x4xd1I), sob orientação de Roberto de Queiroz Padilha, docente do PPGGC, Archangelo detectou que esse empoderamento dos profissionais da Saúde também é importante para aprimorar o processo de regionalização do SUS, diretriz que se caracteriza por atribuir, a órgãos locais, atribuições e poder político, administrativo e fiscal.
Instrumento que visa o acesso adequado e integral do cidadão aos serviços de saúde, a regionalização enfrenta vários entraves, como, por exemplo, a dificuldade na interação entre União, estados e municípios. Por isso, o empoderamento das pessoas que trabalham no SUS pode auxiliar na mudança da prática. "A partir desse viés, é possível olhar para as demandas específicas de uma região geográfica e de sua população e entender suas características e peculiaridades; isso é uma gota de esperança no combate às históricas desigualdades que assolam o Brasil", finaliza o pesquisador.
Sua dissertação deu origem ao livro "Regionalização e acesso", cujas versões em diferentes idiomas podem ser acessadas em https://bit.ly/3qv5ept.