E o machismo, cabe dentro da UFSCar? Não, não cabe. Mas, apesar de não caber, por que comportamentos machistas são ainda tão presentes dentro da nossa Universidade? "É preciso entender o machismo de forma estrutural, que vem historicamente do patriarcado, do sistema capitalista, que colocou pessoas e corpos em condições subalternas. É desse lugar, da divisão sexual do trabalho, da divisão entre o público e o privado, que vem toda a desigualdade de gênero que vivemos na sociedade e, consequentemente, dentro da Universidade", contextualiza a professora Natália Salim, do Departamento de Enfermagem (DEnf) e Coordenadora de Diversidade e Gênero da Secretaria Geral de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (SAADE) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
De acordo com Laura Maria, estudante de Enfermagem na UFSCar e Coordenadora de Núcleo do Movimento de Mulheres Olga Benário, "o machismo começa a se manifestar na sociedade desde muito cedo e sua origem está na socialização de gênero, que é como as normas, papéis, expectativas e valores relacionados ao gênero são transmitidos às crianças desde o nascimento e durante seu aprendizado nas escolas, que exerce papel essencial na formação de todas as pessoas". O Movimento de Mulheres Olga Benário é uma articulação nacional em defesa dos direitos e das vidas das mulheres.
Quando falamos de machismo, estamos falando sobre um sistema de crenças, valores e comportamentos que coloca homens cis em uma posição de superioridade sobre as mulheres, com base no gênero. "São exemplos de uma postura machista a crença de que as mulheres são naturalmente menos capazes ou emocionalmente instáveis em comparação com os homens, comentários sexistas, objetificação e sexualização do corpo feminino, propagação da desigualdade salarial, padrões de moralidade, violência de gênero, entre muitos outros", exemplifica Laura Maria.
"Quando uma mulher é silenciada, interrompida na sua fala, o que é muito comum; quando ela é impedida de assumir uma posição de destaque; quando vemos em uma loja de brinquedos a diferença daquilo é feito para meninos e para meninas; quando mulheres são punidas por suas roupas; chamadas de loucas e de histéricas quando se posicionam; quando são repreendidas pela forma que falam, quando são assediadas nas ruas de forma naturalizada, estamos vendo a expressão do machismo se manifestar", completa Salim.
Os estereótipos de gênero e a perpetuação do machismo
São diversos os estereótipos de gênero que podem ter efeitos prejudiciais tanto para meninas quanto para meninos, contribuindo, consequentemente, para a formação de adultos com atitudes machistas. "Os meninos, por exemplo, enfrentam a pressão de se enquadrar em padrões de masculinidade que enfatizam a força, a agressividade, a independência emocional e a busca pelo sucesso a qualquer custo, podendo limitar a expressão emocional e criar expectativas irrealistas de comportamento; a crença de que os meninos não devem expressar emoções, exceto a raiva, pode resultar em dificuldades para identificar e lidar com os sentimentos, o que a longo prazo é extremamente prejudicial", descreve Laura Maria.
Quanto às meninas, os estereótipos de gênero levam a restrições de escolhas e oportunidades, direcionando-as para áreas tradicionalmente femininas, como cuidado e serviço, em vez de áreas de liderança, ciência e tecnologia; levam à pressão para a conformidade e perfeição, afinal meninas frequentemente são pressionadas a serem agradáveis, obedientes e perfeitas em todas as áreas de suas vidas, o que pode levar a altos níveis de ansiedade e autoexigência; além da objetificação e sexualização que contribuem para a formação de uma autoimagem distorcida e reforçam a ideia de que o valor das meninas está ligado à sua aparência física.
"Meninas e meninos são punidos quando eles não correspondem àquilo que é imputado ao sexo biológico e isso tem consequências sérias para a vida adulta, porque essa construção sobre gênero, sobre o sexo biológico leva à reprodução de comportamentos machistas", afirma a professora da UFSCar.
Feminismo x machismo
De acordo com Natália Salim "feminismo não é o contrário do machismo (na verdade, a gente trata no plural - feminismos - considerando que temos uma diversidade de mulheres e de movimentos também), porque os feminismos são uma luta, são um movimento histórico pelos direitos das mulheres e no combate à desigualdade de gênero; não são uma luta pela superioridade, são uma luta pela igualdade".
Laura Maria apresenta a questão da seguinte forma, "para que a emancipação das mulheres seja efetiva é necessário discutir os antagonismos. O verdadeiro feminismo é a luta que esclarece as verdadeiras contradições, o verdadeiro opressor, e o verdadeiro inimigo. É mecanismo de dominação e do interesse do capitalismo que se crie a falsa ideia de que a contradição antagônica é entre homens e mulheres quando na realidade é entre toda a classe trabalhadora, oprimida, e o sistema opressor em que vivemos. Essa é uma estratégia de camuflagem que nada faz além de confundir as mulheres, dividir em gêneros uma luta unificada de explorados para evitar que combatam, juntos, a sociedade exploradora, nosso verdadeiro alvo".
O que fica claro é que a luta do feminismo é ainda extremamente necessária, pois o machismo perpetua a desigualdade de gênero em várias áreas. A violência doméstica, o assédio sexual, o estupro e o feminicídio são outras consequências diretas. A ideia de que as mulheres são emocionais demais para cargos de liderança restringe a liberdade de escolha, mina a autoestima e a confiança. A pressão para conformar-se aos padrões de gênero tradicionais e as experiências de discriminação baseadas no gênero enfraquecem a saúde física e mental. O machismo limita a participação das mulheres na política e na economia, resultando em políticas e decisões consequentemente menos justas. "É importante lembrarmos que o machismo prejudica não apenas as mulheres, mas também a sociedade como um todo, pois impede o pleno desenvolvimento de recursos humanos e a criação de uma sociedade mais justa e igualitária. Portanto, a luta pela emancipação das mulheres e contra o machismo é fundamental para todos na construção de uma sociedade ideal", defende a estudante da UFSCar.
"O Brasil histórica e estruturalmente é um país machista: é só a gente pensar na cultura do estupro, a misoginia, o quanto as agressões e toda essa violência de gênero são normalizadas, e isso se agravou nos últimos anos, com um governo que só reforçou, reproduziu e disseminou violência de gênero. Então, os desafios são muitos, porque, na diversidade de mulheres brasileiras, a gente vê as que são mais vulnerabilizadas historicamente: mulheres negras, mulheres trans, mulheres periféricas, que são muito mais expostas a situações de violência e à negação de direitos", lamenta Salim.
O combate ao machismo
"É verdade que muitas vezes as pessoas podem adotar comportamentos machistas sem perceber, afinal sempre houve internalização de estereótipos de gênero e normas culturais que estão profundamente enraizados na sociedade", diz Laura Maria. "Esses comportamentos foram sendo validados e reforçados, reproduzidos de várias formas e em diferentes contextos, desde a igreja, na família, na escola e na própria ciência que por muito tempo reforçou e propagou a ideia de inferioridade do corpo das mulheres, da falta de habilidades para áreas como a das Exatas; esse corpo que deveria desempenhar as suas funções reprodutivas, de cuidado e ser lugar e objeto de prazer do outro", completa a professora. E as duas concordam: para construir comportamentos anti-machistas e promover a igualdade de gênero, é fundamental educação e conscientização, ensinar e aprender sobre as questões de gênero, estereótipos de gênero e as formas como o machismo se manifesta.
"A ideia de uma 'criação feminista' significa construir um ambiente em que meninas e meninos sejam criados com igualdade de oportunidades, sejam incentivados a desafiar os estereótipos de gênero prejudiciais. Isso ajuda a construir uma sociedade mais justa, em que todas as pessoas, independentemente de seu gênero, tenham respeito, igualdade de direitos e oportunidades", afirma Laura Maria.
Para Natália Salim, "essa educação que rompe com a desigualdade de gênero precisa acontecer o mais precocemente possível, já na infância, com práticas que ensinem sobre a igualdade de gênero, que o lugar da mulher é onde ela quiser, que ela pode fazer escolhas e que os meninos também sejam educados nessa perspectiva, sejam educados para o cuidado, sejam educados para a sensibilidade".
"A importância de debater as masculinidades está justamente em reconhecer que o machismo não é benéfico para nenhum de nós, nem para os homens nem para as mulheres. Ao explorar e desafiar as expectativas tradicionais de masculinidade, os homens conseguem visualizar e entender como essas expectativas podem ser prejudiciais para eles mesmos e para a sociedade como um todo. Isso também ajuda a criar um ambiente em que os homens se sintam incentivados a se envolver ativamente na promoção da igualdade de gênero, pois quando se entende que a luta feminista não é antagônica aos homens, não há uma competição entre homens e mulheres", conclui a ativista. "Esse é o grande desafio de toda sociedade, que precisa estar engajada no combate ao machismo, principalmente os homens, e para isso é preciso debater sobre essa masculinidade que é tão nociva; isso só é possível com uma educação que seja contínua, que comece na infância e se estenda inclusive para o espaço da universidade como um lugar que está formando pessoas para além de suas profissões e, com isso, poder construir uma sociedade mais equânime, na qual a violência não tenha lugar", defende a professora.
Campanha
Para combater o machismo e toda forma de violência, a UFSCar lançou a campanha "Discriminação não cabe na UFSCar. Aprenda, ensine: Violência é crime". Trata-se de uma estratégia para realizar um movimento educativo com a comunidade a fim de que todas as pessoas possam perceber o quanto são violentas em suas atitudes cotidianas e rever suas ações, mas também para que possíveis agressores entendam que qualquer ato de violência é passível de investigação e punição perante a lei.
"Somos uma comunidade humana e plural. Combater todos os tipos de violência é importante para garantir o convívio pacífico e, mais que isso, permitir com que as diferentes visões de mundo se encontrem e possibilitem, com isso, a construção de um conhecimento plural, diverso, elaborado a partir de diferentes pontos de vista, experiências e culturas. Não é possível viver em uma sociedade de paz sem combater todos os tipos de violência", afirma Vinícius Nascimento, gestor da Secretaria Geral de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade (SAADE) da UFSCar.
No escopo da campanha, "queremos vestir os campi com cartazes, flyers, adesivos e promover diferentes tipos de ações educativas como rodas de conversa, diálogos e atividades culturais, tudo com o propósito de mitigar a violência, construir uma cultura da paz e promover a diversidade", destaca ele.
"Cada pessoa da comunidade UFSCar precisa se enxergar como um instrumento dessa transformação. A mudança exige o trabalho diário, a partir do diálogo franco e do forte engajamento de todas e todos", conclui a Reitora Ana Beatriz de Oliveira.
Para conferir os vídeos da campanha, acesse: www.ufscar.br ou o perfil de Instagram @ufscaroficial